Economia Libertária e suas perspectivas

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Na grande maioria dos casos, entre todos aqueles ou aquelas que se consideram anarquistas, sempre tem existido silêncio ou omissão sobre as problemáticas teóricas e práticas que se identificam com a construção de uma hipotética economia libertária nas sociedades contemporâneas.
Na minha opinião, vários factores estão na origem desses factos.
Em primeiro lugar, muitos anarquistas, por razões de índole ideológica e atitudes compulsivas e dogmáticas em relação a autores clássicos (como são os exemplos das leituras de Proudhon, Bakounine e Kropotkine), limitam-se a decorar e aplicar mecanicamente conceitos que acham como os únicos válidos e verdadeiros para estimular a “revolução social” e a emancipação social. Embora considerando-se diferentes, pensam e agem como qualquer cristão em relação à Bíblia. Este dogmatismo e religiosidade é tanto ou mais perverso, conquanto as contingências negativas da própria sociedade não lhes permite ler a obra completa do autor que habitualmente idolatram e, por outro lado, pura e simplesmente, desconhecem ou ignoram os autores que não se enquadram no seu modelo ideológico ou revolucionário.
Em segundo lugar, quando se trata de equacionar os conteúdos e as formas de uma economia libertária integrada numa hipotética sociedade anarquista, socorrem-se das experiências autogestionárias e colectivistas realizadas em Espanha, no período de 1936-39. Não é que esse exemplo histórico não seja extremamente positivo na sua singularidade emancipalista. Todavia, continuar a preencher o vazio e a impotência do presente com factos históricos que não foram pensados nem praticados por nós, é transformar bandeiras, heróis e experiências revolucionárias num ritual simbólico compulsivo movido pela força da inércia e da frustração. Mais grave ainda: não compreenderam as causas que levaram ao fracasso dessa tentativa emancipalista e continuam, para o efeito, a raciocinar e agir como se o Estado e a sociedade capitalista não tivessem sido objecto de mudanças nos domínios económico, social, político e cultural.
Em terceiro lugar, se considerarmos que a ordem económica de qualquer sociedade integra quatro elementos básicos - produção, distribuição, troca e consumo de bens e serviços -, não se compreende que, hoje, para todos aqueles ou aquelas que são apologistas da construção de uma sociedade anarquista ou da realização de uma revolução social, não persista a necessidade imperativa de apresentar um “modelo” de economia libertária que dê sentido e conteúdo a uma acção e um imaginário colectivo para extinguir as lógicas de regulação do Estado e do mercado sobre a actual economia. Como não têm nenhuma proposta inteligível e, manifestamente, não demonstram capacidades para construir uma hipotética economia libertária, socorrem-se da cartilha dos clássicos ou, então, limitam-se a deixar a resolução desse problema para as calendas gregas: ou seja, o próprio acto da revolução social e seu dom teleológico implicam não somente a abolição do Estado, da propriedade privada, do trabalho assalariado e do capital, como inclusive, por dedução lógica, esse acto de destruição, ao transformar-se num movimento social inelutável, por natureza criativo, informal e espontâneo, resolveria de uma penada todos os problemas da economia libertária.
Esta posição é, aliás, predominante no actual movimento libertário internacional. Tudo o que é concernente a esta temática é visualizado numa perspectiva negativista do Estado, do capital, do salariado e da propriedade privada. Todos os esforços e motivações dos seus militantes são enquadrados na crítica radical da sociedade capitalista e do Estado, sem todavia propor qualquer modelo alternativo de economia libertária, quando pretendem intervir junto das massas trabalhadoras, dos oprimidos e dos explorados. Estando de acordo ou não com esse postulado, hoje, para quem quer construir uma sociedade anarquista, torna-se imperativo que os militantes dessa causa dêem visibilidade social a uma qualquer economia libertária. Interrogando-me, agora, sobre a natureza analítica da economia libertária através do pensamento de alguns autores clássicos, pergunto-me: Que economia libertária? O individualismo de Stirner? O mutualismo de Proudhon? O anarco-comunismo de Kropotkine? Que comunismo libertário de Diego Abad Santillán deduzido de Bakounine e Malatesta?
Enfim, sei que não é uma tarefa fácil comparar autores, cuja obra foi vivida e observada em contextos sócio-históricos contrastantes e cujas análises nem sempre primaram pela linearidade conceptual. Não obstante estas dificuldades, num primeiro momento, analisarei as principais contribuições dos autores que citei atrás. Num segundo momento, tendo presente as perversões criadas pelo capitalismo e o Estado a nível mundial, tentarei esboçar quais as tendências embrionárias de um tipo de economia alternativa, cujas incidências libertárias poderão ajudar a construir um caminho no sentido da anarquia.

Visões contrastantes da economia libertária

Do mesmo modo que fizeram uma crítica radical do Estado e do capitalismo, alguns autores clássicos anarquistas, embora diferentemente, esboçaram modelos ou hipóteses plausíveis de uma economia libertária. Esses modelos ou hipóteses plausíveis de uma economia libertária primam, na generalidade dos casos, na sua essência, por modalidades organizacionais e processos de socialização na produção de bens e serviços pautados pela auto-organização, a democracia directa, relações sociais de tipo informal e espontâneo. A articulação e a interdependência entre o espaço-tempo da produção com o espaço-tempo da distribuição, troca e consumo desses mesmos bens e serviços numa perspectiva sistémica leva-nos, inevitavelmente, a pensar a economia libertária traduzida noutro tipo de interdependências mais complexas e mais abstractas, a nível local, regional, nacional e mundial. As características da auto-organização, da democracia directa, das relações sociais de tipo informal e espontâneo manifestam-se, também, nos espaços-tempos da economia global em redes sociais de reciprocidade, de cooperação e de solidariedade. Não existindo poder nem autoridade hierárquica de tipo formal, a emergência dos fenómenos de coordenação e de decisão das redes sociais são veiculados por relações sociais centradas na liberdade dos indivíduos, no apoio mútuo, na socialização da riqueza, no mutualismo e no federalismo. O imperativo da identidade colectiva entre produtores e consumidores inscreve-se em princípios e práticas conducentes à abolição de quaisquer resquícios de opressão ou exploração no mundo do trabalho.
Em termos genéricos, talvez tenha feito uma síntese aproximada sobre o que escreveram os autores clássicos em análise. Todavia, a leitura específica dos quatro autores leva-nos a observar uma série de divergências e oposições no que concerne à definição conceptual de um modelo hipotético de economia libertária no contexto da sociedade anarquista.
Comecemos por Max Stirner, um autor “maldito” entre o pensamento dominante e, também, entre os anarquismos que têm sido predominantes na história do movimento libertário internacional.
Na sua obra maior – O Único e a sua Propriedade – por razões sobejamente conhecidas na época, como sejam a influência de Hegel e Marx no pensamento filosófico e político de meados do século XIX na Europa Ocidental, Max Stirner, pelas opções filosóficas e políticas que desenvolveu, permite-nos afirmar que o seu dilema analítico era distante e oposto da visão materialista e histórica de Marx. Para este, como todos sabem, os fenómenos económicos determinavam, em última instância, toda a ordem social, política e cultural.
Uma leitura fácil e dogmática de Max Stirner (2000) leva muitos anarquistas a considerá-lo como expoente de um anarquismo individualista, em muitos domínios semelhante aos valores, interesses e motivações identificados com a ideologia liberal burguesa. Por outro lado, os anarquismos com maior visibilidade social, com especial incidência para o anarco-comunismo, o anarco-sindicalismo e o comunismo libertário, sempre viram, nas proposições filosóficas, políticas e sociais do individualismo de Stirner, uma excrescência que roía todas as bases de organização social e de motivação das massas trabalhadoras que aspiravam realizar a revolução social.
É evidente que o indivíduo egoísta stirneano não obedece a qualquer deus ou amo, nem a qualquer entidade abstracta exterior à realidade intrínseca da sua individualidade e liberdade. É um indivíduo natural e espontâneo que recusa qualquer poder ou autoridade que interfira ou colida com a sua essência e a sua subjectividade. O egoísmo do indivíduo é o meio e o fim da sua essência concreta. Se não assumir a sua essencialidade egoísta torna-se um escravo e um alienado face aos anacronismos da exploração do capital, da autoridade do Estado, do poder dos deuses e de todas as abstracções despóticas e totalitárias como são os casos dos conceitos de sociedade, da universalidade, da humanidade e do próprio homem.
Não se pense que o indivíduo egoísta de Max Stirner se traduz na oposição ao carácter abstracto e alienante da sociedade e da humanidade. Para ele, o indivíduo enquanto unidade particular inserida em todas as relações interpessoais e intergrupais, funciona sempre como Único nas suas pulsões egoístas, na estrita medida em que só elas permitem que ele seja, efectivamente, livre e Único em todas as manifestações possíveis de vida. Portanto, não é a família, o grupo de referência, comunidade, cidade, país ou sociedade que explica a essência dos indivíduos egoístas que as integram, mas precisamente o contrário.
No amplo sentido do termo, a “associação” plausível de indivíduos egoístas aparece como o cimento aglutinador e integrador de individualidades, liberdades e propriedades pessoais decorrentes de uma diversidade de Únicos. Os indivíduos, quanto mais egoístas forem, maiores probabilidades terão, efectivamente, de serem livres e, por outro lado, defender-se-ão de uma forma espontânea e natural contra qualquer constrangimento grupal, comunitário, colectivo ou de outras formas de autoridade e de poder institucionalizado em qualquer hipotética sociedade: sociedades tradicionais, comunista, socialista ou capitalista.
Dir-se-ia que as teses de Stirner são muito próximas da visão dos economistas neo-clássicos ou dos anarco-capitalistas que vêem no indivíduo um homo economicus detentor de uma subjectividade baseada no interesse e escolhas racionais, cujas preferências no quadro das funções de produção e de consumo explicariam, através da agregação desses interesses e preferências, o equilíbrio entre a oferta e a procura de bens e serviços no mercado e, em última instância, os preços de mercado, os salários e o lucro. Nada mais enganador. O indivíduo egoísta de Stirner nunca se pode sujeitar a uma relação social consubstanciada em qualquer poder discricionário de um homo economicus alienado e atomisado pelas leis da economia, cuja sustentabilidade e reprodução se baseiam em poderes e autoridades exteriores aos indivíduos: dinheiro, mercado, Estado, capitalismo, sociedade, humanidade, universo, etc.
Portanto, as poucas ilações que se podem deduzir da obra de Max Stirner em termos de uma hipotética economia libertária, nunca poderão surgir de qualquer tipo de sociedade ou modelo de ordem económica, inclusive, de uma sociedade anarquista finita. É verdade que Stirner, ao descurar no indivíduo a sua essência de ser social e biológico e, por outro lado, o facto de não ter deduzido que todos os tipos de organização implicam interdependências e complementaridades, ou seja, reciprocidade, cooperação e solidariedade, esqueceu-se ou omitiu uma parte substancial do espaço-tempo da construção da identidade e da liberdade dos indivíduos egoístas. A hipótese remota de associação só emerge quando se produzir, distribuir, trocar e consumir bens e serviços de forma natural e espontânea. Nestas condições, será que a essência egoísta de cada indivíduo, da sua irredutível liberdade e da sua subjectividade intrínseca traduzida na sua propriedade inalienável é atravessada pelo dom da ubiquidade do Único? Todavia, na opinião do autor, este Único articulado com interesses e subjectividades de índole económica nunca poderá ser cristalizado numa ordem ou modelo económico institucionalizado e formalizado, porque, assim, estaríamos perante poderes e constrangimentos totalitários, colectivos, abstractos, sempre exteriores aos indivíduos e sempre cerceadores da sua liberdade e individualidade espontânea e natural.
Façam-se leituras e comparações entre a obra de Proudhon e Stirner e constatar-se-á facilmente que existem contradições e perspectivas opostas em relação ao que seria uma hipotética economia libertária. Embora a antinomia seja crucial para percebermos a função da dialéctica serial de Proudhon (1872) como base científica da interpretação, explicação e conhecimento da ordem económica de qualquer tipo de sociedade, os dilemas essenciais de qualquer indivíduo integrado numa hipotética economia libertária, serão sempre atravessados por fenómenos de cooperação “versus” competição, altruísmo “versus” egoísmo, vida “versus” morte. Nesta perspectiva, indivíduo e sociedade são parte e totalidade de uma essência indestrutível, identitária, contraditória e conflituante que nunca terá uma solução final, mas pode ser sujeito e objecto de aperfeiçoamento sistemático, se caminhar no sentido da construção de uma sociedade anarquista e, necessariamente, de uma nova ordem económica.
É evidente que é preciso ter em atenção dois factores na obra de Proudhon. Em primeiro lugar, muitas reflexões deste autor resultaram de conjunturas históricas criadas pelas perversões do Estado opressor e dominador e do capitalismo explorador e expropriador. Em segundo lugar, a unidade e a essencialidade dos indivíduos e dos grupos que constituem qualquer tipo de sociedade, implica analisá-los como partes de um todo, integrando quatro ordens específicas: ordem social e cultural, ordem económica, ordem política e ordem biológica. Embora possamos comprender a especificidade de cada uma elas, elas são inelutavelmente interdependentes e complementares. Se assim não fosse, nunca se compreenderia como o factor trabalho, enquanto fundamento criador/produtor de toda a riqueza social, é expropriado e alienado em relação à propriedade inalienável do trabalho individual e do trabalho colectivo reportado às suas funções e tarefas.
A primeira grande obra de Proudhon - A Proriedade é um Roubo (1997 ) - não é uma mera crítica à ciência económica burguesa que, na ocorrência, via na natureza do trabalho e nas virtualidades mágicas e abstractas do mercado, a razão de ser do lucro, do trabalho assalariado, das desigualdades sociais, mas também e, sobretudo, as virtudes e essência do homo economicus como paladino da razão, do progresso, da liberdade e da democracia. Para Proudhon, a ordem política inscrita nas decisões e funções do Estado e dos partidos que aspiravam governá-lo, em relações balizadas pelo poder e autoridade hierárquica formal, não se circunscrevia exclusivamente a exercer a dominação sobre os trabalhadores, mas sobretudo porque qualquer função capitalista resultava num roubo e nem geravam riqueza social. Como consequência, o Estado composto por burocracias profissionais e burocracias políticas transformaram-se em verdadeiros parasitas daqueles que a criavam: os trabalhadores que produziam a riqueza social. Mas, para Proudhon, quem diz ordem económica no sentido libertário do termo, diz correlativamente que é necessário arranjar modalidades de produção, de distribuição, de troca e de consumo da riqueza criada pelo trabalho. Nestas condições, é necessário pensar nas características das relações sociais, nos processos de socialização, nas redes sociais, no conhecimento, na energia, na informação, na matéria que o mundo do trabalho deverá desenvolver para criar e reproduzir harmoniosamente uma nova ordem económica libertária, que denominou de Federação Agrícola-Industrial (Proudhon, 1996).
Não admira que, para Proudhon, a liberdade, a autogestão, o mutualismo e o federalismo sejam conceitos diferentes, cujas especificidades e substancialidades se reportavam a um sistema global de economia libertária coerente. As relações sociais, a integração e a coordenação social subjacentes à acção individual e colectiva dos indivíduos, grupos, colectividades locais, regiões, continentes e sociedade global fundamentar-se-iam através da mesma ordem económica: produção, distribuição, troca e consumo de bens e serviços incrustrados em relações sociais baseadas na democracia directa, liberdade, cooperação e reciprocidade. Ou seja, a identidade entre produtor e consumidor, entre trabalhador individual e trabalhador colectivo, entre a riqueza produzida e a sua posse, através da associação e auto-organização de trabalhadores livres e soberanos.
O mutualismo é, indiscutivelmente, o espaço-tempo crucial da entrada do indivíduo no colectivo ou no grupo, onde a auto-organização da produção, da distribuição, da troca e consumo de bens e serviços pode e deve realizar-se prioritariamente. Mas se falarmos nas interdependências e complementaridades desses indivíduos integrados em múltiplas mutualidades no contexto de uma ordem económica de incidência espaço-temporal local, como espaços e temporalidades mais extensas compostos por zonas geográficas e territoriais de âmbito regional, continental e mundial, então só através da federação e da confederação das múltiplas mutualidades poderemos ver emergir a democracia directa, a liberdade, a cooperação e a reciprocidade num sentido sistémico e profundo. Só nessa base podemos escrever ou falar sobre uma hipotética economia libertária, onde não haveria lugar para a existência de patrões e de Estados, nem também para qualquer tipo de sociedade comunista.
Para Proudhon, a liberdade era a mola real das relações sociais espontâneas e informais no mundo do trabalho que permitiam a emergência da democracia directa, da auto-organização, da cooperação e da reciprocidade no seio do mutualismo e do federalismo (1996). Pode parecer paradoxal, mas neste domínio, entre Max Stirner e Proudhon não existem diferenças profundas nos seus modelos de análise em relação às proposições de uma hipotética economia libertária numa sociedade anarquista. Quer Stirner, quer Proudhon eram profundamente anti-comunistas, na medida em que a uniformidade e a igualdade impostas por qualquer Estado, mercado, modelo de sociedade, por essência e natureza histórica sempre exteriores, constrangedores e abstractos, em relação à identidade concreta, única e inalienável de cada indivíduo e de cada liberdade. Em qualquer contexto societário, uma hipotética sociedade comunista traduzir-se-ia, inequivocamente, em modalidades colectivas de opressão e exploração sobre os indivíduos e os trabalhadores que aspiravam a ser livres e soberanos.
Da mesma forma que Proudhon via a ordem económica de características libertárias como expressão genuína do desenvolvimento científico de uma nova ciência denominada Economia Social (Bancal, 1984), a reflexão e a luta de Kropotkine, polarizada à volta do anarco-comunismo baseou-se, fundamentalmente, num tipo de epistemologia e metodologia de incidência científica (Kropotkine, 1975). As abordagens de carácter económico, por essa razão, primavam pela crítica radical do Estado e do capitalismo, demonstrando como as suas modalidades de regulação e de socialização eram ineficientes em termos de produção e consumo de riqueza social e, sobretudo, revelavam-se manifestamente contraproducentes através das suas perversões organizacionais, culturais, naturais, humanas e tecnológicas, porque não estavam positivamente integradas nos parâmetros dos princípios e das práticas científicas de uma ordem económica libertária (Kropotkine, 2001). Nesta assunção, toda a problemática do anarco-comunismo enquadrada numa perspectiva de economia libertária, em termos de modalidades de produção, distribuição, troca e consumo de bens e serviços, resumia-se aos pressupostos da razão e do progresso de quaisquer sociedades no quadro da sua diversidade científica: física, economia, sociologia, biologia, geografia, antropologia, história, etc. Como já sublinhei, embora existam outros factores explicativos da necessidade da implantação de uma economia libertária identificada com os pressupostos do anarco-comunismo, em última instância, na primeira obra referenciada de Kropotkine (1975), o imperativo científico é determinante.
Uma das obras que nos ajuda a compreender o pensamento de Kropotkine é sem dúvida O Apoio Mútuo (Kropotkine, 1989) escrito nos finais do século XIX. Poder-se-ia deduzir que esta obra de referência não está vocacionada para um tipo de análise científica que é, essencialmente, de índole filosófica, biológica e sociológica, partindo-se, assim, do princípio que o autor descuraria a dimensão analítica de uma hipotética Economia Libertária. Não é essa a minha opinião.
Kropotkine, por um lado, critica radicalmente as versões científicas dos autores mais emblemáticos desse período histórico, que procuram demonstrar científica e positivamente a existência da sociedade capitalista e do Estado através de comparações e deduções “inquestionáveis” das ciências biológica, antropológica e social. Entre outros, não admira, assim, que Darwin e Malthus tenham sido idolatrados e criticados. A analogia e a comparabilidade do homem e da sociedade com outras espécies animais e vegetais transformou-se no grande paradigma científico da época. Todavia, a extrapolação abusiva dessas leis biológicas e naturais para as ciências sociais e humanas resultava na naturalização histórica do capitalismo e do próprio Estado. Por outro lado, o facto dos seres humanos e da própria sociedade resultarem de processos biológicos e sociais de natureza espontânea e informal, levava a reflexões comparativas incongruentes entre as espécies humana, animal e vegetal. Daí terem extrapolado que o primado da liberdade e da individualidade de cada indivíduo, a relação destes com qualquer grupo, sociedade ou comunidade, far-se-ia, inevitavelmente, através da competição, da concorrência, da violência: ou seja, da lei do mais forte. “Inquestionavelmente”, só existia uma síntese e uma leitura possível: a opressão e exploração provocadas pelo capitalismo e pelo Estado eram naturais, positivas e irreversíveis na evolução de qualquer tipo de sociedade.
É contra estes pressupostos anti-científicos e negativos para o projecto emancipalista do anarco-comunismo que Kropotkine escreve a obra referida (id., ibid.). Como metodologia, a comparabilidade e analogia com outras espécies animais e vegetais permite-lhe extrapolar e extrair conhecimentos científicos para analisar a espécie humana, o homem e as sociedades. A grande ilação científica que extrai resume-se ao facto da competição, da concorrência, da violência e do egoísmo dos indivíduos serem contrários à identidade colectiva dos seres humanos, assim como da sua liberdade, naturalidade e espontaneidade e, logicamente, da negação de relações sociais assentes na democracia directa, da auto-organização que Kropotkine considera como bases essenciais dos processos de socialização e de sociabilidade que veiculam a cooperação, a solidariedade e o apoio mútuo. Digamos que a espécie humana é naturalizada pelo poder da natureza e o homem torna-se finalmente um ser bom e livre. Todos esses factores conjugados de uma forma inelutável culminariam na instauração generalizada de comunidades libertárias, cuja síntese global e universal traduzir-se-ia na construção de um modelo de sociedade anarco-comunista. Esta, por sua vez, funcionava historicamente como o maior e o melhor antídoto para erradicar e expropriar o capitalismo e o Estado de forma definitiva.
Entrando mais especificamente no domínio da Economia Libertária na perspectiva de Kropotkine, quer a partir da primeira, quer da segunda obra que já foram referenciadas, apercebemo-nos que os sectores industrial, agrícola e serviços seriam sempre a essência de qualquer tipo de economia. A abolição da propriedade privada, da divisão do trabalho, do lucro, do capital, do valor de troca, do dinheiro e do Estado impunha-se sobremaneira, na medida em que, só assim, se poderia construir um modelo de economia libertária assente na auto-organização, na cooperação e no apoio mútuo das comunidades libertárias e do anarco-comunismo societário. As contradições e eventuais conflitos entre a liberdade e a individualidade de cada indivíduo integrante das comunidades libertárias ou da sociedade anarco-comunista são pura e simplesmente omitidos. O poder simbólico e abstracto da comunidade libertária e da sociedade anarco-comunista dá sentido uniforme e orientação colectiva à cognição e comportamentos dos indivíduos, ao ponto de qualquer emergência de desvio, interesse competitivo, acto agressivo ou egoísta ser espontânea e naturalmente controlado e regulado pelos seus princípios e práticas. O simbólico abstracto tem um poder de socialização e de sociabilidade omnipotente e omnisciente, transformando todos os indivíduos em agentes cooperantes e solidários dos mesmos interesses e das mesmas motivações, das mesmas pulsões de vida inscritas na ordem económica libertária. Segundo Kropotkine, a harmonia é generalizada nas relações de identidade entre o homem e a natureza, entre indivíduos e grupos, entre estes e comunidades libertárias e entre estas e sociedade anarco-comunista.
A análise elaborada por Kroptokine (1975) numa das obras de maior divulgação no meio libertário internacional - A Conquista do Pão – propicia-nos uma abordagem mais centrada numa perspectiva de Economia Libertária. O imperativo hierárquico do consumo em relação à produção esboça-se em função do denominador comum estabelecido pelo anarco-comunismo: de cada um segundo as suas capacidades e para cada um segundo as suas necessidades. Para Kropotkine torna-se fundamental comunizar e socializar as necessidades de todos os indivíduos através do consumo da riqueza social de uma forma igualitária. Por isso, aquando a materialização da revolução social no sentido da construção da sociedade anarco-comunista, impõe-se a necessidade imperiosa de expropriar todo o capital existente: campos, fábricas, vias de comunicação, educação, casas, hospitais, etc. A propriedade privada é extinta de forma radical e imediata.
Como primeira aproximação da leitura desta obra, verifica-se que o primado comunista das necessidades colectivas determina e controla de forma totalitária as necessidades e as motivações individuais da economia libertária. Agora já não é o mercado, nem o capitalismo, nem o Estado, que regulam as pulsões de vida e, logicamente, as motivações e os interesses dos indivíduos produtores e consumidores, por natureza livres e soberanos, mas uma entidade colectiva abstracta que através dos seus valores, ética, princípios, define que a economia “Deixa de ser uma simples descrição de factos para tornar-se uma ciência, como é por exemplo a fisiologia, podendo definir-se, como o estudo das necessidades e dos meios de satisfazê-las com a menor perda possível de forças humanas” (id., ibid.:218). A ciência, por essência abstracta, substitui os indivíduos e os grupos como elementos de racionalização da economia. Este raciocínio do primado das necessidades económicas é acompanhado por uma certa omissão e secundarização das tipologias organizacionais reportadas à produção de riqueza social.
Assim sendo, se não se pode medir o esforço, a motivação e a participação de cada indivíduo em relação à produção de riqueza social, porque os indivíduos são diferentes, quer genética quer culturalmente, qual o factor ou os factores do modelo de economia libertária preconizado por Kropotkine que permitirão restabelecer a identidade individual nas suas múltiplas articulações com a identidade colectiva, nomeadamente nos aspectos concernentes à sua liberdade e espontaneidade reportados à socialização de riqueza social? No amplo sentido do termo, a igualdade que personifica a identidade colectiva implica também diferença e diversidade, pois só estes factores permitem a emergência da identidade individual de indivíduos livres e soberanos que hipoteticamente integrarão qualquer grupo, comunidade ou sociedade. Só nestes termos poderemos perspectivar relações sociais baseadas na espontaneidade e na informalidade. Só nestes termos poderemos observar a emergência histórica da cooperação, da democracia directa, da reciprocidade, do apoio mútuo e da auto-organização, na estrita medida em que são possíveis a participação e decisão efectivas de indivíduos livres e soberanos. A contradição e a conflitualidade entre anarquia e comunismo é, nestes domínios, crucial. Para a anarquia, a liberdade individual coexiste e é paralela com a liberdade colectiva, na medida em que ambas cooperam e são recíprocas nos seus objectivos, interesses, necessidades económicas e convergentes no sentido de uma acção individual e colectiva progenitora da emancipação social. Ou seja, em termos concretos, anarquia, liberdade individual e liberdade colectiva são simultaneamente meios e fins. No âmbito do comunismo conceptualizado por Kropotkine, o indivíduo, enquanto entidade livre e soberana, só existe no contexto da liberdade e da soberania colectiva. O igualitarismo e a uniformidade comportamental e cognitiva impostos totalitariamente aos indivíduos, embora não sejam veiculados pelo Estado e pelo capital, são realizados por uma entidade abstracta que não tem rosto, por um ideal despótico e abstracto possuidor de um poder semelhante ao poder divino e ao poder natural: a ciência, a ideologia e a natureza.
Por isso, não basta que Kropotkine (id., ibid:51) desenvolva este tipo de raciocínio contraditório: “O nosso comunismo, porém, não é nem o dos falansterianos nem o dos teóricos autoritários alemães. É o comunismo anarquista, o comunismo sem governo - o dos homens livres. É a síntese dos dois objectivos procurados pelo homem através das idades: a liberdade económica e a liberdade política”. A situação de exterioridade e de abstracção de quem pensa e decide por qualquer indivíduo continua, perpetuam-se as situações de expropriação e de exploração sobre os potenciais criadores de riqueza social, agora já não pelo Estado e pelo capitalismo, mas pelos funcionários que têm autoridade e legitimidade para liderar e decidir as modalidades de produção, de distribuição, de troca e consumo de bens e serviços. A propriedade privada é abolida, mas em sua substituição é criada e reproduzida a propriedade colectiva através de um poder simbólico abstracto exterior e opressor da liberdade e da individualidade de cada indivíduo: o anarco-comunismo.
Como exemplo pragmático e não meramente simbólico de uma perspectiva de Economia Libertária, poderemos focar a obra de Diego Abad de Santillán (1980) – Organismo Económico da Revolução – a autogestão na revolução espanhola. Embora tivesse sido escrita no período histórico de 1931-36, atravessado pela efervescência revolucionária na Espanha de então e pelas diferentes concepções de revolução social e de construção de uma sociedade anarquista, a originalidade do pensamento do autor como modelo de Economia Libertária é importante. Várias razões me levam a esta afirmação.
Em primeiro lugar, a Espanha, nesse período histórico, era um imenso laboratório de experimentação de tentativas revolucionárias dinamizadas pela CNT e, ainda, de forma incipiente pela FAI. Em segundo lugar, os aspectos totalitários e negativos do socialismo soviético já eram sobejamente conhecidos para se clarificar as antinomias e as contradições subsistentes entre sociedades “socialistas” e sociedades “comunistas” e, sobretudo, entre estas e a probabilidade de construção de uma sociedade anarquista. Por outro lado, a revolução social iniciada em 19 de Julho de 1936 em Espanha estava muito próximo da sua redacção e, em certa medida, resultava das teorias e práticas que foram desenvolvidas no Congresso Confederal da CNT de Zaragoza em 1936.
De qualquer forma, e tendo presente a história da sua elaboração, esta obra de Diego Abad de Santillán personifica o conteúdo do pulsar da revolução social na Espanha de então e, por outro lado, na sua perspectiva económica orienta-se no sentido do comunismo libertário que tinha sido preconizado por Bakounine e Malatesta.
Diga-se de passagem que Diego Abad de Santillán, na altura, era um militante preponderante no seio da FAI e tinha influência no seio da própria CNT. Defensor acérrimo da extinção do Estado e do capitalismo, nesta obra não se limitou a criticar as incongruências e as perversões causadas pelos mesmos. No seu entendimento, para dinamizar, de facto, a emancipação dos trabalhadores espanhóis não bastava criticar o capital e o Estado, era, ainda, fundamental iniciar o processo histórico de experimentação concreta da construção da sociedade anarquista. Para o efeito, haveria que perspectivar um tipo de economia libertária que tivesse em consideração todos os aspectos teóricos e práticos relacionados com a organização da economia num contexto de mudança revolucionária. A complexidade e a dimensão dos factores que integram essa perspectiva implica, segundo o autor, pensar nas modalidades de organização, de coordenação e de decisão do trabalho em tudo que se reporta ao trabalho, às necessidades de produção e de consumo e à consequente troca e distribuição.
O primeiro dilema para Diego Abad de Santillán reportava-se às modalidades de socialização da riqueza social que permitiriam extinguir o capital e o Estado. Seguindo a lógica dos comunistas libertários, esse papel fulcral cabe à acção colectiva das massas trabalhadoras que são objecto de opressão e exploração. Portanto, a classe social que não tinha nada a perder e tudo a ganhar com a revolução social, de uma forma espontânea e natural, transformar-se-ia na vanguarda que lideraria o processo de emancipação dos trabalhadores, sem para o efeito precisar de vanguardas partidárias ou religiosas. Para superar eventuais contradições no decorrer da acção colectiva e revolucionária, os trabalhadores espanhóis precisavam de organizações específicas, daí a lógica e o fundamento da criação da AIT em 1864, da CNT em 1910 e da FAI em 1927.
Assim, para o autor, a construção de uma economia libertária tornava-se possível, desde que: “Basta-nos um facto: queremos conquistar a riqueza social, não para destruí-la, mas sim para administrá-la melhor que o capitalismo e mais eficazmente que o Estado. Isto nos obriga a: a) conhecer esta riqueza em cuja posse haveremos de entrar; b) saber desde agora quais os recursos que teremos de utilizar para que a expropriação dos expropriadores resulte numa vantagem positiva e imediata para a sociedade” (id., ibid.: 65).
Desse modo, a plausibilidade da instauração de uma hipotética Economia Libertária, mesma na fase de expropriação da riqueza social, obrigaria à utilização de métodos e técnicas contabilísticas, por essência racionais, por forma a inviabilizar perversões e omissões comportamentais desviantes e, desse modo, administrá-la e fortalecê-la no contexto da revolução social. A sua essência colectiva passa pela organização sistemática das múltiplas necessidades de produção, de distribuição, de troca e consumo de bens e serviços considerados essenciais para a sustentabilidade e continuidade da instauração do comunismo libertário.
Não admira, assim, que para a consecução definitiva e hipotética de uma Economia Libertária no contexto da sociedade espanhola fosse visualizada com base na criação de Conselhos de Ramo nos domínios da alimentação, da habitação, do tecido e do vestuário, produção agrária, comunicações, transporte, indústria química, metalurgia, mineração e beneficiamento, saúde e higiene, luz, força motriz e água, imprensa e livro, cultura, pesca, produção pecuária e produção florestal. Por outro lado, eram criados o Conselho do Crédito e do Intercâmbio, assim como o Conselho Local da Economia, os Conselhos Regionais da Economia, a Federação Nacional dos Conselhos de Ramo e o Conselho Federal da Economia.
Toda a organização da Economia Libertária, na perspectiva de Diego Abad de Santillán, deveria ser estruturada no sentido da identidade entre o produtor e o consumidor. A distribuição da riqueza social assim como a troca de bens e serviços far-se-ia através da liberdade, da auto-organização e da democracia directa. Admitamos que todos os capitalistas e burocratas das diferentes profissões e corporações fossem transformados em trabalhadores emancipados por via dos constrangimentos e controlo da Economia Libertária. Neste caso, também em relação a este autor se pode equacionar a mesma problemática que foi feita à obra de Kropotkine. Como é que a liberdade individual e a liberdade colectiva coexistem e se identificam? Quem determina e regula as necessidades de cada indivíduo e da sociedade no contexto da Economia Libertária? Na minha opinião, embora com menos constrangimentos e controlo já analisados em relação ao anarco-comunismo de Kropotkine, na perspectiva de Diego Abad de Santillán emerge uma entidade abstracta e totalitária que decide, lidera e tem o poder da razão para administrar a economia e o poder simbólico dos valores, crenças e ideologia inscritos no modelo do comunismo libertário.
Todavia, após as experiências vividas no âmbito da revolução social em Espanha, no período de 1936-39, Diego Abad de Santillán muda muitas das suas certezas revolucionárias em relação ao que tinha perspectivado no Congresso de Zaragoza de 1936.
Na verdade as frustrações, as perversões pessoais e ideológicas levaram-no a assumir a anarquia mais como um ideal e uma utopia do que como um modelo económico definitivo. A hipótese de uma economia libertária era, por tais motivos, sempre um projecto societário inacabado e só se realizaria paulatinamente através de experiências concretas. A auto-organização e a autogestão continuavam a ser os dilemas principais da luta dos trabalhadores assalariados contra o capital e o Estado. Na sua opinião, não havia a necessidade de definir, previa e rigidamente, as práticas e os princípios de um qualquer modelo económico libertário. Desse modo, em qualquer circunstância, uma hipotética economia libertária desenvolver-se-ia de um forma espontânea e natural no decorrer do processo histórico revolucionário.
No fim da sua vida, Diego Abad de Santillán define bem o que entende por economia libertária: “Hay que repetirlo, el anarquismo no es un sistema político ni um sistema económico, es un anhelo humanista que no culmina en una orientación o en una estructura ideales, perfectas, sin rozamientos de intereses ni ambiciones de poder (...) El anarquismo no está vinculado, encadenado a ningún sistema económico, los conocidos y los desconocidos” (Santillán, 1976:148-149).

Hipóteses históricas de emergência de uma economia tendencialmente libertária

Após ter feito uma leitura sintética das obras mais importantes de autores clássicos, interessa agora perceber as mudanças operadas no âmbito do Estado e do capitalismo e, logicamente, a sua natureza negativa e as características da actual crise gerada pelo fenómeno da globalização. Por outro lado, importa sobremaneira compreender e explicar porque é que as diferentes perspectivas de economia libertária enquadradas num imaginário colectivo de incidência anarquista - anarco-comunismo, anarco-sindicalismo, comunismo libertário - não singraram como experiências societárias, não obstante já termos assistido à falência do modelo socialista de tipo soviético e de se terem agravado as bases de legitimidade e de institucionalização das relações de exploração e de dominação decorrentes das funções perniciosas do Estado e do capitalismo.
Com o advento da revolução e mudanças induzidas pelas Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC), nomeadamente, a nível da micro-electrónica, informática, biotecnologia, robótica, telemática, indústria espacial, etc., assistimos a grandes transformações nas modalidades comportamentais, cognitivas e organizacionais da totalidade dos trabalhadores assalariados que estão inseridos nas actividades económicas reportados aos sectores primário, secundário e terciário.
As principais mudanças estruturais e estruturantes relevam do facto de que o processo de automatização iniciado pelas TIC a partir da década de 70 do século XX, não só se têm generalizado progressivamente nas estruturas e funções dos três sectores da actividade económica, como ainda evolui no sentido da sua expansão gigantesca no sector de serviços, relegando o sector industrial para uma posição subalterna e o sector agrícola para uma situação residual. A explicação plausível desta evolução decorre, em grande parte, do deslocamento e integração da maior parte da energia, informação e conhecimento que antes estava polarizada no “saber-fazer” dos trabalhadores assalariados da segunda revolução industrial para os mecanismos automáticos das TIC. Por essa razão, milhares de milhões de trabalhadores assalariados são despejados dos locais de trabalho, outros tantos são objecto de reciclagem e formação profissional, enquanto que aqueles que pretendem trabalhar são constrangidos a obter novas qualificações e competências face às exigências de flexibilidade, polivalência e empregabilidade ditadas pelos mecanismos de concorrência e de competição no mercado de trabalho à escala local, regional, nacional e mundial.
Os custos de produção e, logicamente, todas as actividades económicas que integram a produção de bens e serviços são cada vez mais baseados em informação e comunicação e a sua natureza substantiva é, predominantemente, imaterial. Em termos espaço-temporais, os actos de produção coincidem cada vez mais com os actos de distribuição, troca e consumo. O tempo real do tempo virtual. A generalização de redes sociais de tipo informal e espontâneo subvertem, de forma inaudita, o espaço-tempo e os custos de produção de bens e serviços inscritos na lógica de regulação normativa do mercado e do Estado, ao ponto de assistirmos à expansão gigantesca da economia informal sustentada e reproduzida pela pobreza, fome, exclusão social, crime, violência, droga e guerra. A economia informal revela-se simultaneamente como sintoma de uma crise inaudita do Estado e do capitalismo a nível mundial e, por outro lado, como sintoma da sua própria perpetuação.
Se quisermos encontrar um denominador comum nesta evolução, verificamos um que é inquestionável: a racionalidade instrumental do capitalismo. A crescente integração da ciência e da técnica nos múltiplos sectores da activiadde económica possibilita que as relações de dominação e de exploração do capital sobre a natureza e sobre o mundo do trabalho sejam potenciadas. O mundo do trabalho é um meio e um objecto privilegiado da grande finalidade do capital: a maximização do lucro. A apropriação do lucro e a sua socialização é, cada vez mais, abstracta e diversificada. Embora saibamos quase tudo sobre o poder das grandes empresas multinacionais e grupos económicos transnacionais nestes domínios, pouco ou nada sabemos das redes financeiras internacionais que dominam o mercado bolsista e financeiro mundial, nem tão pouco o controlo que exercem na sustentabilidade e reprodução dos vários tipos da economia informal.
No amplo sentido do termo, estamos perante uma racionalidade instrumental do capitalismo que é cada vez mais abstracta e cada vez mais exterior à vontade dos seus próprios progenitores. Se não fosse essa a tendência actual, não se compreende porque é que a vontade colectiva de todos os capitalistas do mundo não se desenvolve no sentido de tornar todos os potenciais escravos modernos em produtores e consumidores de mercadorias, e por essa via, tornarem-se também escravos modernos da distribuição e da troca de todas as mercadorias que produzem e reproduzem o sistema capitalista. Se conseguissem resolver tal desiderato, todos os potenciais capitalistas do mundo sentir-se-iam realizados nas suas necessidades históricas de dominação e de exploração: maximizavam o lucro e integravam o mundo do trabalho na sua lógica de estabilidade normativa.
O Estado-Nação, por outro lado, evoluiu no sentido de uma crise profunda, cuja perda de legitimidade e funcionalidade junto da sociedade civil está a pôr em risco a sua sobrevivência histórica. Essa crise não é visível somente ao nível da ineficiência da governação exercida pelos poderes jurídico, legislativo e executivo, mas também e sobretudo no carácter cada vez menos representativo da utilidade e funcionalidade das suas políticas sociais nos domínios da segurança social, da previdência, dos subsídios de desemprego, da saúde, da educação e da segurança. A crescente visibilidade social da corrupção e do clientelismo protagonizados pela burocracia profissional e pela burocracia política indiciam um crescente hiato entre as necessidades da sociedade civil e as prerrogativas funcionais dos agentes do Estado. A legitimidade para regular e controlar o contrato social institucionalizado entre a sociedade civil e o Estado é, por tais motivos, cada vez mais frágil.
Por outro lado, o peso estruturante da nova ordem económica mundial imposto pelo poder das transnacionais e das multinacionais subverte e elimina grande parte da legitimidade e funções adstritas ao controlo e administração dos territórios e da economia confinados às fronteiras e limites do Estado-Nação. Para contrariar esta perda de influência sobre a economia, o Estado-Nação, tal como o conhecemos hoje, tende a desmoronar-se e a transformar-se num Estado mundial.
Perante este quadro de crise generalizada do Estado e do capitalismo, as alternativas societárias que pretendiam realizar o socialismo ou o comunismo revelaram-se frustradas e contraproducentes, na estrita medida em que não só não extinguiram as bases económicas, sociais, políticas e culturais que inviabilizam as aspirações de emancipação social, como, por outro lado, demonstraram-se incapazes de realizar essa tarefa histórica. Os múltiplos anarquismos que fazem da anarquia uma opção de luta para a realização da revolução social - com especial incidência para o anarco-sindicalismo, o comunismo libertário e o anarco-comunismo – estão em crise porque não conseguem estruturar uma acção colectiva suficientemente revolucionária, cuja finalidade é abolir o capitalismo e o Estado.
Com base na actual crise do Estado e do capitalismo, estas correntes bem se esforçam por aplicar os seus princípios e as suas práticas, todavia, embora em alguns países se assista à emergência de alguma visibilidade social, nomeadamente a partir de grupos de jovens, mulheres, minorias étnicas e culturais, estudantes, na maioria dos casos, têm pouca expressão no seio dos trabalhadores assalariados, dos oprimidos e dos explorados que mergulharam no mundo da economia informal, do desemprego, no crime, da precariedade da vinculação contratual, na miséria e na exclusão social. Em minha opinião, esta crise decorre essencialmente da manifesta incapacidade destas correntes em compreenderem as actuais características do Estado, do capitalismo e, necessariamente, dos próprios trabalhadores assalariados, dos oprimidos e explorados que dizem defender. Como consequência dessa incapacidade, impotentes e frustrados nas suas intenções de fazer a revolução social, transformam-se em “guetos ou seitas religiosas”, vivendo de uma forma dogmática e “revolucionária” a memória histórica de heróis, mitos e bandeiras em que não tiveram participação activa.
No entanto, e por mais paradoxal que possa transparecer, como a anarquia não é um ismo e, portanto, não pode transformar-se numa religião, num dogma ou numa sociedade hipoteticamente finita, a luta pela liberdade e pela emancipação social nunca poderá ser extinta enquanto a natureza subsistir e os indivíduos do planeta Terra continuarem a ser uma unidade indestrutível de essência biológica e social.
Neste amplo sentido, a anarquia é, foi e será sempre a negação do Estado e do capital, mas a sua consecução prática só poderá hipotética e progressivamente ser realizada pelos indivíduos que aspiram à liberdade, à cooperação, à solidariedade e à reciprocidade, sem necessidade de deuses e de amos. Para este efeito, não são necessários os mitos da luta de classes, da revolução social, do mito de que o poder e o Estado só são realidades institucionais exteriores à natureza dos indivíduos e dos grupos sociais que compõem as sociedades.
Podemos já hoje visualizar algumas tendências, embora incipientes, da experimentação social de práticas conducentes à construção de certos tipos de economia que vão no sentido da perspectiva libertária. Refiro-me, concretamente, às experiências que decorrem de algumas cooperativas e associações privadas sem fins lucrativos.
É certo que a grande maioria dessa experiências decorrem, fundamentalmente, da crise de regulação da economia por parte do Estado e do mercado, como são, nomeadamente, os casos de saúde, educação, formação e serviços de animação cultural que integram as actividade económicas no âmbito das comunidades locais. Mas também é verdade que alguns grupos se constituem autonomamente fora dessas vicissitudes de adaptação à crise de regulação do Estado e do mercado, e de forma autogestionária produzem, distribuem, trocam e consomem determinados produtos e serviços que escapam ou procuram fugir das vicissitudes da concorrência e do lucro capitalista e procuram, por outro lado, organizar-se com base nos parâmetros da liberdade, da cooperação, da solidariedade e da reciprocidade. Por outro lado, a sua esfera de acção tende a alargar-se para o exterior das comunidades locais onde estão inseridos, criando, paulatinamente, redes sociais informais e espontâneas, aproximando e identificando produtores e consumidores e, ao mesmo tempo, vão abolindo, progressivamente, as relações sociais baseadas no oportunismo e exploração, no momento da distribuição e troca de bens e serviços.
Para que esta alternativa hipotética de economia libertária se desenvolva no sentido da anarquia é imprescindível que não seja só um mero fenómeno de reacção e de adaptação à crise de regulação económica inscrita nas funções do Estado e do mercado. Neste momento histórico é imprescindível que a anarquia seja difundida como projecto societário emancipalista, mas tendo presente que é sempre um projecto inacabado, porque a liberdade e as pulsões de vida, na perspectiva da anarquia, é para viver todos os segundos, todos os minutos, todas as horas, dias, meses, anos e, como tal, nunca poderá ser objecto de cristalização ou de modelação histórica.

 


Referências Bibliográficas

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