Anarquismo e Política: Revisão Crítica de Camillo Berneri
Stefano
d'Errico
BERNERI HOJE (PREÂMBULO)
Contra a autonomia da política
Berneri
é apenas conhecido como "mártir" da guerra civil espanhola,
assassinado por
se
opor aos diktat de Moscovo que visava sufocar o "mau exemplo"
da revolução libertária (oficialmente para contentar a Sociedade das Nações
restaurando a "república de todas as classes": na realidade
Estaline usava a Espanha como moeda de troca para celebrar o pacto de não
agressão com a Alemanha nazi). Incómoda para todos (fascistas, comunistas,
católicos e "liberais"), a sua obra – publicada parcialmente e com
grande atraso – passou a segundo plano. Certa "ortodoxia anarquista"
valorizou as suas críticas aos ministros da CNT anarco-sindicalista – o maior
sindicato ibérico – no governo republicano de 1936-39, muito mais do que o seu
experimentalismo antidogmático. Este é realmente um legado teórico
impressionante ainda muito actual.
Face
à "crise da política" e à derrocada da esquerda marxista, a área do
"socialismo irregular" – "próxima", mas não coincidente,
com o anarquismo – não procura encontrar resposta adequada. Em Itália, como
secretário de Unicobas, sou induzido pelos factos e comportamentos a abordar
esta temática. Por um lado vejo propor de novo a praxis "grupista" do
conventio ad escludendum, dos serviços de ordem que impõem na praça leaders
cada vez mais anacrónicos – uns contra os outros – fazendo e destruindo
cartazes, pelo seu quinhão e hegemonia em lutas e manifestações (muitas vezes
meras representações): repetindo as taras da velha-nova esquerda que, na forma
de farsa, regeneram a doença do leninismo. Por outro lado, os sectores mais
sinceros parecem escravos dum anti-ideologismo que conduz à rejeição e
"nivelamento" de todas as experiências históricas, inclusive da
grande tradição do socialismo libertário. A recusa duma investigação sem
preconceitos sobre os erros do passado não fornece respostas para o futuro.
A
militância "antagonista", eco-social e libertária, acha-se assim
dividida verticalmente entre uma maioria de grupos e "cães sem
coleira" que opera num território e outra (dividida e estruturada) minoria
de aparelhos que se limita a "capitalizar" – para consumo e uso
próprio – o trabalho de base, transformando-o em elemento de mera
"representação" por grupos que, parados nos anos 70, se auto assumem
como "porta-vozes" mediáticos. Tudo isto tem origens bem precisas e a
procura da "pedra filosofal" não tem sentido: não cairá do céu um
novo Bakunin, menos ainda um novo Marx. Porém, bastaria examinar a história
para perceber que é preciso fazer o que nunca se fez: operar uma reconversão
ética da política. O fim não justifica os meios, mas são estes últimos que,
automaticamente, determinam os resultados.
Como
tal coisa requer esforço, é mais clara e instintiva a recusa da autonomia da
política. É um conceito que os anarquistas têm continuamente repetido, e
não se trata de "religião" da ética. Simplesmente uma esquerda
apegada ao conformismo do ipse dixit e à delegação não pode desenvolver
os germes da autogestão. No entanto, o resto
da
esquerda – porque condicionada pelo legado de Marx, o "Maquiavel do
socialismo"
–
sempre fez ouvidos de mercador.
Vemos
assim o Sísifo do socialismo autoritário percorrer de novo, servilmente, os
mesmos caminhos, não obstante a história demonstrar, sem apelo, que a ditadura
do partido reproduz matematicamente a servidão económica e moral.
Além
do mais, aquela "esquerda" é atreita a
mutações genéticas: vimos os pós- -comunistas passar a vau do
bolchevismo para o neo-darwinismo social de estilo liberal. Nada de estranho: o
instrumento guia desta transição é a razão de Estado. Escreveu Berneri: "A
fórmula leninista 'os marxistas querem preparar o proletariado para a
revolução
aproveitando o Estado moderno' está na base tanto do jacobinismo leninista como
do parlamentarismo e do ministerialismo social reformista ".
Mas
não é tudo. Existindo no mundo uma ”procura" de anarquismo – mais
ou menos conhecida – não lhe corresponde uma "oferta" adequada. O que
resta do movimento libertário não consegue estar presente a tempo por causa da
marginalização induzida por um doutrinarismo ossificado. Em poucas palavras,
não se pode combater a autonomia do político com o cepticismo elevado a sistema
e com a indiferença relativamente à política. In primis, é necessário um
programa, porque para vencer é preciso saber convencer. Além disso, se a
política deve estar subordinada à ética, os que fazem política devem assumir
sem falta essa exigência ética. A responsabilidade quanto às consequências da
sua acção para os outros e para o mundo, e não apenas em relação à sua própria
consciência. Portanto o parâmetro ético de referência deverá ser
verdadeiramente posto à prova, reactualizado, reelaborado do modo mais plural
possível, além de expurgado de qualquer fundamentalismo. Se o anarquismo é um
instrumento de emancipação, para demonstrar a sua validade não pode arrogar-se
uma espécie de autocomplacência niilista e narcisista no que respeita aos seus valores.. Pelo contrário: não só deve demonstrar ter razão
de modo concreto hic et nunc, mas ser também capaz de trabalhar para
criar as condições duma vitória na luta social. Não bastam por isso a "boa
vontade", a determinação dum só ou de pequenos grupos mais ou menos
"coordenados". O anarquismo específico necessita de uma verdadeira
organização a nível internacional, com forte sentido de pertença, porém aberta
e horizontal: sistema complexo votado ao estudo, discussão e experimentação
prática, que desenvolve relações com o mundo complexo do associativismo e
valoriza as diferenças, para criar uma verdadeira perspectiva geral. Seria o
momento para uma constituinte libertária, nova e abrangente..
Resumindo:
a política é a arte do possível e se para o libertário os fins não justificam
os meios, tem no entanto o dever de saber desembaraçar-se em política, de não
delegar em (supostos) "especialistas". E aqui intervém Berneri: "Estar
com o povo é fácil se se
trata
de gritar: Viva! Abaixo! Avante! Viva a revolução! – ou
se se trata simplesmente
de
bater-se. Mas chega o momento em que todos perguntamos: que fazemos? É
indispensável ter uma resposta. Não para se ser chefe, mas porque a multidão
não a cria.” Eis porque o movimento de emancipação necessita grandemente
da reflexão berneriana. Berneri è contra o comunismo de caserna que se
transformou depois em capitalismo de estado e novamente em liberalismo, porém
não faz descontos a ninguém, nem mesmo à ortodoxia anarcoide. Berneri persegue,
"desencova" e revela as fobias daquele "ritualismo" que tomou quase impotente um movimento
portador dos mais adequados "anticorpos" produzidos pela humanidade
para contrariar a dominação sob todas as suas formas.
A anarquia não é simplesmente a "ausência de
Estado"
Para
Berneri, a anarquia: "não é simplesmente o não-Estado, mas um sistema
político a--estatal, ou seja, um conjunto de autonomias federadas". Ele
precisa: "Um organismo como o Estado actual pode ser demolido, mas a
sua ossatura compara-se a um sistema de feixes musculares e nervosos, que são
os serviços públicos. (...) As sociedades primitivas, as cidades da
época das Comunas, as aldeias camponesas, as vilas de província de Espanha,
podem realizar de forma mais ou menos integral aquele anarquismo solidarista,
extra-jurídico, a-estatal caro a Kropotkin, mas as metrópoles actuais, as
nações que têm um ritmo de vida económico internacional devem apressar- -se a soldar as fracturas produzidas pela
fase insurreccional, porque a vida não pára; como o cirurgião deve apressar-se
a passar do bisturi à agulha, quando se apercebe que o coração do doente reduz
o seu ritmo". E já em 1926, afirma: "os
nossos melhores, de
Malatesta a Fabbri, não conseguiram resolver as questões
que colocamos
oferecendo soluções que são políticas. A
política é cálculo e criação de
forças
que realizem a aproximação da realidade ao sistema ideal,
mediante fórmulas de
agitação, de polarização e de
sistematização que sejam agitadoras, atraentes e
lógicas num dado momento social e
político. Um anarquismo actualizado, consciente das suas próprias forças de
combatividade e de construção e das forças adversas, romântico no coração e
realista no cérebro, pleno de entusiasmo e capaz de contemporizar, generoso e
hábil em condicionar o seu apoio, capaz, em suma, de economizar as suas forças:
eis o meu sonho. E espero não estar sozinho ".
Pier
Carlo Masini escreveu que Berneri: "transferia a temática federalista
para o seio
do
movimento operário, até agora hegemonizado pelo centralismo de marca
germano- -social democrática e de marca
russo-bolchevista". O lodiano escreveu: "sou
simplesmente autonomista-federalista (Cattaneo completado por Salvemini e pelo
Sovietismo) ". O sovietismo de Berneri era um sovietismo social muito
crítico do anarquismo "de óculos cor de rosa" de kropotkiniana
memória. Os corporativismos locais e a 'justiça popular" são riscos que
não se podem correr. A liberdade não é nunca
absoluta,
porque deve contemplar os deveres para com os outros. Para esse fim a .
colectividade
manifesta uma autoridade que é diferente do autoritarismo: "Á
autoridade formal do grau e do título antepomos a autoridade real dos valores e
da preparação individuais. Isto sem cair numa dialéctica de fusão, ou confusão,
dos contrários ". A liberdade não é nada se não for concretizada, e
não é possível uma igualdade entre os seres humanos obtida por diktat ideológico.
É necessário partir do empenhamento em valores partilhados e do emprego
dos mesmos como bitola comum. Berneri reforça: "A sociedade, seja qual
for, não pode satisfazer inteiramente a necessidade de liberdade de cada um. A
vontade das maiorias não é sempre conciliável com a das minorias. Qualquer
forma política pressupõe a subordinação das minorias. Logo a autoridade. Evitar
a autoridade significa evitar a sociedade. Um indivíduo pode viver no tonel de
Diógenes, um povo necessita da cidade ".
Berneri
não acredita na justiça sumária das
massas, nem na sociedade "transparente", que é um pântano
sem instituições. A sociedade libertária deve ser criada em tomo da
responsabilidade e portanto com aceitação de regras, partilhadas mas coercivas:
"(...) um mínimo de direito penal é necessário tal como um mínimo de
autoridade (...) creio que a ideia da justiça está no povo, mas não
creio na justiça popular, entendida como justiça das multidões ". A
massa não se compõe de libertários natos, nem de querubins. Quem o afirma está
enganado e é ingénuo: "A negação a priori da autoridade
resolve--se numa angelização dos homens e na irrupção de um génio colectivo,
quase imanente à revolução, que se chama iniciativa popular ".
O
lodiano não se deteve certamente em vagas proclamações "milenaristas"
relativas a "palingéneses sociais" automáticas: investigou a
diversidade estrutural que se interpõe entre as instituições próprias da
sociedade civil e as categorias impostas pelo Estado, supondo oposição entre as
primeiras e as segundas com vista a uma estratégia de libertação e reconstrução
revolucionárias. Esta é uma lição também para os nossos dias. Origina uma
reflexão sobre as instituições de que deverá dotar-se a sociedade civil, as
regras que virão, a estrutura económica que adoptará e principalmente os
mecanismos deliberativos para definir o todo. Isto comporta necessariamente o
reconhecimento duma diferença radical entre as instituições e o Estado, no
âmbito da consecução da autonomia duma sociedade civil federalista
relativamente a toda e qualquer entidade centralista. Em poucas palavras, para
ser credível, a luta contra o Estado deve ser animada por uma perspectiva de
organização futura capaz de pôr em crise a entidade estatal hoje para a abolir
amanhã. A escola, por exemplo, é uma instituição que, gerida directamente pela
sociedade civil, como "esfera pública não estatal", vai ser
alternativa ao privado, mas também à "razão de Estado" (pense-se, por
exemplo, na redacção do programa de história com vista à liberdade do ensino e
de aprendizagem). Do mesmo modo mil outras realidades, segundo um sistema que
se organiza do simples ao complexo, existindo entre si uma diferença natural,
seja de nível organizativo ou jurídico, entre instituições e serviços.
Elemento
central é a descentralização administrativa, que tem nas comunas o seu ponto de
referência principal, como também o são, através do anarco-sindicalismo, os
comités de gestão da produção e dos serviços, expressão do mundo do trabalho. E
solucionando estas questões eminentemente práticas, que têm a ver com o que
fazer na vida de todos os dias e com a refundação dum sentido e duma
codificação do direito visando gerir a convivência, as trocas e a produção, que
segundo Berneri se logra afugentar a sombra do Estado. Mas não será empunhando
as armas embotadas fornecidas pela abstracção ideológica que se abaterá a
centralização, se porá fim à exploração e se esconjurará o capitalismo,
"tradicional ou de Estado".
Pela definição dum projecto político libertário
Por
todos estes motivos Berneri refuta e combate o diktat ideológico que
veta aos anarquistas a elaboração de um projecto e os impede de agir mesmo no
plano táctico: "Meio: a agitação numa base realista, com enunciação dum
programa mínimo."
Além disso, a
história obriga a dar respostas e a ausência de programa condena o anarquismo a
agir a reboque das condições determinantes dos acontecimentos e sobretudo
"na cauda" das outras entidades políticas: sem um projecto, em vez de
independência logra-se sujeição.
A
antipatia pelo programa não deveria distinguir os revolucionários, pelo
contrário ela é típica de quem não quer mudar realmente o estado de coisas: "O
gradualismo do socialismo legalitário e estatólatra é paralelo à antipatia,
evidentíssima em Kautsky, por qualquer plano de reconstrução económica em
sentido socialista: Que a engrenagem social seja tão complicada que nenhum
pensador possa indagar todos os males e prever todas as possibilidades, é
evidente,' mas (..) isto não impede que seja necessário ao socialista
apoiar-se num programa prático, tal como ao cientista é necessária a luz duma
hipótese". Não se trata portanto de mero "projectismo": "Mas
é preciso distinguir: há programas que parecem querer dar a síntese do amanhã
histórico como cálculo determinístico de qual será aquele amanhã e que estes
são os programas ditos realistas, quando são apenas deterministas,' enquanto há
programas que embora calculando grosso modo o jogo das forças estáticas e
dinâmicas não esquecem que a probabilidade de certas resultantes é tanto mais
alta quanto mais a vontade de renovação forçar os limites do progresso ".
A
primeira coisa que Berneri explica é que se não devem confundir juízos de facto
e juízos de valor. Por isto "ousa" pôr em discussão a prática
abstencionista. Para Berneri já Bakunin advertia para não se confundir táctica
com estratégia, por isso: "Não distinguir a primeira da segunda conduz
ao cretinismo abstencionista, não menos infantil que o
cretinismo
parlamentarista ". E ainda: "O cretinismo
abstencionista é aquela
superstição
política que considera o acto de votar como uma diminuição da dignidade humana
ou que valida uma situação político-social consoante o número de abstencionistas
nas eleições, quando não junta os dois infantilismos ".
O
caminho a seguir é o do comunalismo: "Eis, pelo contrário, um tema de
estudo: o Estado no seu funcionamento administrativo. Eis um tema de
propaganda: a crítica sistemática ao Estado como órgão administrativo
concentrado, logo incompetente e irresponsável. (...) Uma campanha
sistemática deste género poderia atrair sobre nós a atenção de muitos que não
se perturbaram lendo Deus e o Estado (de Bakunin) ". Com isto, o
lodiano evidencia a "frescura" da própria interpretação da realidade,
agora ajustada à situação do mundo actual. É hoje evidente o distanciamento dos
cidadãos das instituições estatais, mas tal facto não encontrou adequada
alternativa por parte da crítica "revolucionária", amiúde focada na
propaganda ideológica e pouco atenta às contradições do quotidiano, largamente
experimentadas pelas "pessoas comuns".
Berneri
afirmou em diversas ocasiões que uma praxis inicialmente radicada no
embuste duma democracia representativa sem controlo de mandatos – paliativo
concedido a uma pequena parte apenas da população por monarcas que conservam a
nomeação
e gestão do parlamento – nasce como resposta, não como princípio e não
pode
permanecer sempre e de qualquer maneira um ditame doutrinal inamovível que se
não preocupa com as situações particulares que se têm de enfrentar no curso da
história. A propaganda abstencionista é uma "reacção contra a
representação genérica ".
O
pensamento do lodiano torna-se claríssimo lá onde se conjuga a questão do voto
com o que para ele deveria ser o projecto libertário em transformação: "Há,
quanto a mim, quatro sistemas políticos possíveis: a administração directa, a
representação genérica ou autoritária, a democracia propriamente dita e a
anarquia. A administração directa é um sistema político no qual o povo em massa
delibera sucessivamente sobre várias questões de interesse geral, e providencia
a execução das suas próprias deliberações. A representação genérica ou
autoritária é um sistema no qual o povo delega a sua soberania num certo número
de pessoas por ele escolhidas e lhes confere o poder deliberativo e executivo. O
abstencionismo político é uma reacção contra a representação genérica,
reacção salutar, mas que não tem razão de existir frente à democracia
propriamente dita, sistema no qual o povo delega os vários assuntos de
interesse geral a técnicos, reservando-se a aprovação dos respectivos actos,
controlando o seu exercício, reservando-se a sua eventual destituição. Os
anarquistas têm razão para continuar no seio da democracia a sua oposição
correctiva e a sua propaganda educativa a fim de permitir a passagem da
democracia à anarquia, sistema no qual a administração directa e a democracia
se integram, suprimindo qualquer resíduo da representação autoritária ".
A
participação como votante toma-se pois por si um instrumento de "meio
termo" plenamente utilizável se as condições de progresso social na via
das realizações práticas da sociedade libertária são suficientemente avançadas
e adequadas.
Anarquismo & Anarquia
A
polémica contra o abstencionismo, os nossos afrontaram-no aliás após a vitória
eleitoral da Frente Popular em Espanha em 1936, para a qual concorreram de
modo determinante os
anarco-sindicalistas da CNT, que pela primeira vez se não mantiveram numa
posição intransigente, sendo por isso objecto de críticas impiedosas vindas de
fora da península ibérica. Mas sem aquela vitória, sustenta o lodiano, não
teriam sequer ocorrido as subsequentes conquistas revolucionárias que a CNT
soube alcançar a partir da base. A derrota teria significado uma condição
prática (e até psicológica) bem diferente para o movimento dos trabalhadores e
por isso seria absurda uma campanha abstencionista naquela situação: as
tácticas políticas são avaliadas em função dos resultados e não de modelos
ideológico-apriorísticos.
Berneri
coloca assim a questão: "O problema, em suma, é este: é o
abstencionismo um dogma táctico que exclui qualquer excepção estratégica?"
Para
Berneri, o voto é um instrumento útil no interior do mundo libertário e, como
já vimos, define repetida e impiedosamente como "cretinismo
abstencionista" a demonização sem ressalvas de tal mecanismo
decisório, com maior razão se esta recusa se estende ao interior da organização
específica. Uma recusa que é de uso nas estruturas anarquistas, não porque o
voto fosse incompatível com a tradição, mas por uma espécie de "moda"
esclerosada pela militância. Berneri discrimina pois claramente entre voto e
voto. No caso de listas locais, e mais ainda em plebiscitos e referendos, não
vê para os anarquistas nenhum motivo de aversão: "Se amanhã se
apresentasse o caso dum plebiscito (desarmamento ou defesa nacional armada,
autonomia dos alógenos, abandono ou conservação das colónias, etc.) haveria
ainda anarquistas fossilizados que julgariam dever abster-se ".
Berneri,
a propósito da dimensão política do anarquismo, nobilita-a sem hesitação e
prefere seguramente os que se batem pelo êxito da inscrição libertária na
história a quantos, abstraindo da política, reduzem o libertarismo a uma
mera, sofistica, profissão de fé. O “purismo" evidencia a
sua total inutilidade, e é assim sinónimo de desculpa e narcisismo: "Quem
crê na possibilidade da anarquia como sistema político é anarquista, quaisquer
que sejam as suas opções estratégicas, quaisquer que sejam as suas reservas
quanto à realização máxima da sociedade futura. E é anarquista ainda que
excomungado pelos sofistas doutrinários, ou mesmo que lhe oponham com o termo
genérico de princípios as opiniões desta ou de aquela escola, as opiniões deste
ou daquele mestre, a destreza polémica deste ou daquele jornalista ilustre ou
os protestos escandalizados dos que pensam pela cabeça de outros ".
Mas
como fazer, se são os anarquistas os primeiros, imobilizados pelo fundamentalismo,
a não acreditar no anarquismo político? A falta de experiência é efectivamente
sinónimo de desconfiança nos meios libertários e, mais ainda, nas
possibilidades intrínsecas da perspectiva libertária: "A história é
oposição e síntese. O anarquismo, se quiser
actuar na história e tornar-se um grande factor histórico, deve
ter
fé na anarquia, como possibilidade social que se realiza por aproximações
sucessivas.
A anarquia como sistema religioso (todo o sistema ético é por natureza
religioso) é uma 'verdade' de fé, logo pela sua própria natureza, evidente
somente a quem a pode ver. O anarquismo é mais vivo, mais
vasto, mais dinâmico. É um compromisso entre a Ideia e o facto, entre o amanhã
e o hoje. O anarquismo procede de modo
polimorfo, porque está na vida. E mesmo os seus desvios são buscas duma rota
melhor ". Berneri é portanto "um anarquista que crê na
anarquia e, mais ainda, no anarquismo". É um gradualista
revolucionário, porque consciente da futilidade do tudo e imediatamente ou
do "tanto pior, melhor", assim como da inatingibilidade da
perfeição,
e distingue a anarquia ("religião ") do anarquismo (a anarquia
na história): "o anarquista
compreende que na história se actua sabendo ser povo, pelo que tanto quanto
permite ser compreendido e agir, indicando metas imediatas, interpretando
tarefas reais e gerais, respondendo a sentimentos vivos e comuns ".
Berneri nunca foi
maximalista:
"Parece-me que não exercer um direito porque foi concedido pelo Estado,
não criar uma situação melhor que a actual porque se quereria uma melhor do que
a que se conseguiu, significa fossilizar a nossa acção política ".
Ainda hoje a esquerda "radical" não sabe distinguir entre reformismo
e gradualismo.
No
decurso da revolução espanhola, sendo embora adepto intransigente da defesa e
desenvolvimento das conquistas populares, das colectivizações agrárias e da
socialização das indústrias, soube compreender as tentativas da direcção cenetista
para se desenvencilhar naquela situação. Naturalmente esta posição de
Berneri só se manteve enquanto a CNT da época soube manter a sua autonomia e
permaneceu na ofensiva. Aos primeiros sintomas do precipitar da situação,
tomou-se um crítico feroz das cedências determinadas pela incapacidade de
responder às exigências da política.
Berneri
era fautor, não da mediação mas, pelo contrário, da experimentação pragmática,
e sabia bem que os maiores limites do anarquismo não estavam na falta de
seriedade ou honestidade dos "leaders" mas, pelo contrário, na
impreparação absoluta de todo um corpo militante habituado a pensar-se como
único dono do campo face à revolução: vice versa, num panorama necessariamente
plural, o projecto comunista libertário defende-se também com as armas da
política. Como era reconhecido pela própria organização anarco-sindicalista, só
obviando verdadeiramente a esta impreparação (objectivo pelo qual havia lutado
toda a sua vida) se poderia restituir a quem de direito aquela famosa,
proudhoniana, capacidade política da classe operária, que é a razão
primeira da tradição libertária.
Foi
também contra o sindicato único, indicando aos anarquistas, como objectivo
prioritário, a intervenção e criação de estruturas anarco-sindicalistas.
Divergia assim de Malatesta e Fabbri, que propugnavam uma presença
indiferenciada na estrutura "unitária" de massas, sempre guiadas pela
secretaria nacional social-reformista ou comunista.
A questão sindical
O
anarco-sindicalismo deve ter autonomia própria e bem definida, inclusive do
movimento específico. O anarquismo adquiriu importância ao assumir uma
fisionomia sindicalista. O anarco-sindicalismo é uma estrutura organizada,
composta de trabalhadores e a eles adequada, com seus tempos e problemas.
Doutro modo arrisca-se a permanecer vítima dos mesmos males do movimento, que é
o "partido" dos anarquistas. Paralelamente, a realidade sindical
libertária é a mais "política" dum movimento que, na ausência de
particular ligação às massas, tende fatalmente a alhear- se do mundo real,
tomando-se marginal e ensimesmado. O anarco-sindicalismo, intérprete do
espírito da Primeira Internacional, deve reconduzir o sindicato à sua origem:
uma estrutura independente de qualquer partido (logo do movimento libertário
enquanto tal), mas não alheado da política onde a acção política está fixada na
alteridade da praxis democrática e horizontal. Em síntese, em tudo se baseia na
capacidade dos trabalhadores enquanto tais, sem "mediações" e
directivas provenientes de "élites" e guias externos. Doutro
modo não poderiam superar os limites naturais do sindicalismo burocrático e
"dependente": da sujeição a forças políticas sedimentadas no campo
externo. O sindicato de partido está condenado à inacção e posto à guarda da
paz social quando a sua força parlamentar de referência conquistou o poder e só
"lançado" na "luta" quando esta está na oposição. Por outro
lado, a "exterioridade" das alavancas da política ao mundo do
trabalho, representa uma concessão inaceitável no campo libertário: a
existência de um "limbo" separado onde se amadurecem as ideias-guia, uma
espécie de plano abstracto onde o mundo do trabalho não é vivo e pulsátil, mas
apenas "representado" sobre o palco cénico do teatrinho da política
(prevalente – mas não unicamente – parlamentar). Um desvio típico da Segunda
Internacional social democrática e da Terceira Internacional bolchevista" que destina à
força
política – partido, depois identificado com o Estado – o plano do projecto,
deixando
ao sindicato no máximo o mera "contencioso" e fazendo-o escravo de
estratégias amadurecidas externamente para isso, expropriando assim o mundo do
trabalho da sua própria titularidade política sobretudo em termos
projectuais.
O
primado da ética" toma-se portanto preeminência da democracia de base
(praxis organizativa) .
O mito da mera "emergência social"
Está
desfeita a lenda de que à política se pode substituir a mera emergência
social, em cujo encalço têm recaído políticos (embora em nome e por conta
do "rebeldismo" e duma suposta "antipolítica"). Em fins dos
anos 70, o mito da suposta "autonomia proletária", de proveniência
italiana mas que triunfou por muitos anos em toda a Europa, contribuiu para
inquinar consideravelmente o panorama da militância libertária". Ainda outro "sucedâneo" que
mais uma vez (e contra natura), foi bem acolhido pelos anarquistas
maximalistas, com os seus resquícios de extremismo, aventureirismo e violência.
O espesso manto da intransigência "revolucionária”
mascarava a operação mimética. Contrabandeada igualmente como
"radical" (só porque votada numa manifestação de rua
autoreferenciada) e "libertária", a área da autonomia introduziu pelo
contrário uma elaboração totalmente autoritária. O aparente assemblearismo
ocultava grupos de "profissionais", determinados a decidir sempre e
de qualquer maneira o curso dos acontecimentos sem atenção às dinâmicas
expressas pelo movimento, a folha de figueira detrás da qual se escondia a
fruição duma delegação em branco. Foi o triunfo duma praxis de trabalho
político destinado a denunciar instrumentalmente a inutilidade das organizações
específicas, a fim de realizar a estrutura "unitária" atada com duplo
fio à superestrutura mais ou menos oculta empenhada em impor a sua linha.
Segundo a praxis mais comum, a crítica do ideologismo mais transviado e
totalisante fez-se crítica das ideias e estranguladora da discussão colectiva.
Vem referida ao máximo a condenação da diversidade a favor da uniformidade e do
esmagamento, adoptando métodos ditadas pela intolerância para com qualquer
diferença. Em nome de uma mal compreendida "consciência proletária",
pretensamente avessa ao debate sobre a metodologia e a ética da liberdade,
impõe-se uma vez mais a velha asserção de autonomia da política. Logo a
antítese autoritarismo-libertarismo vem mais uma vez sem assinatura. Uma
verdadeira chantagem ideológica em homenagem ao estilo do controle e da tomada
do poder no micro-sistema "antagonista", da preminência do económico
e do "militar", não só duma de urna suposta "linha de conduta
comunista", sobre o gradualismo, as reivindicação e as necessidades. Donde
o activismo totalizante, geralmente com vista a um empenhamento acrítico e
dirigido autoritariamente, levado até às últimas consequências, estranho a toda
e qualquer forma menos voluntarista de reflexão susceptível de pôr em dúvida um
poder de actuação social através da actuação impositiva contínua por parte de
um grupo homogéneo e seleccionado, dirigente de facto.
A
última nota de cor visa as franjas do extremismo anarquista fundamentalista,
convencido de agarrar a ocasião histórica para tomar o lugar da
autonomia na divisa black-block, como se o encontro ritual na praça
pública não fosse rapidamente aproveitado, hoje como ontem, como um útil
pretexto para renovar as políticas repressivas estatais, visando a
criminalização tout court de qualquer coisa que é muito mais complexa,
articulada e bastante menos pobre: o projecto e a praxis do socialismo
libertário no seu todo.
Berneri
indicava, pelo contrário, a necessidade de um movimento com uma identidade
precisa, capaz de batalhas de opinião, de deixar marca na história, numa
complexidade poliédrica que o tome instrumento primário na reconquista
simultânea da subjectividade política das massas exploradas e do mais avançado
humanismo. Tal é o sentido do "sovietismo" de Berneri: não um
entusiasmo conselhista de inspiração pannekoekiana ou luxemburgista, mas a
recolocação do anarquismo enquanto tal na sua dimensão própria. Por isso é
preeminente o protagonismo do movimento anarquista com a sua identidade, como
"primeira pessoa", sem demora nem medo, em total autonomia e como força
política: "Se o movimento anarquista não adquirir a coragem de se
considerar isolado, espiritualmente, não aprenderá a agir como iniciador e
propulsor. Se não adquirir a inteligência política, que nasce dum pessimismo
racional e sereno (que é, de facto, sentido da realidade) e dum atento e claro
exame dos problemas, não saberá multiplicar as suas forças, encontrando nas
massas consenso e cooperação ".
A identidade do anarquismo, única alternativa aos
totalitarismos
Porém
a identidade nada tem a ver com a procura autística dum "esplêndido
isolamento". Ainda em Falência ou crise?, lemos: "Fechado
na intrasigência absoluta face à vida política, o anarquismo puro está
fora do tempo e do espaço, ideologia categórica, religião e seita. Fora da vida
parlamentar, fora da administração municipal e provincial, não
soube nem quis conduzir as batalhas de pormenor, suscitando, de quando em vez,
consensos; não soube agitar problemas que interessem a maior parte dos
cidadãos. (..) O movimento libertário alheou-se de uma infinidade de
batalhas, alucinado sempre pela visão da Cidade do Sol, sempre perdido
na repetição dos seus dogmas, sempre encerrado na sua propaganda estritamente
ideológica ".
Daqui
a sua crítica à impostação "frentista" (em sentido único) que tomou o
movimento libertário escravo do bolchevismo. Berneri indicará ao anarquismo a
recusa da homologação "frentista" como um dos remédios necessários a
restituir autonomia ao movimento: "Desta experiência ressalta a
insuficiência táctica do movimento anarquista, demasiado confiante nas frentes
únicas, muito pouco autónomo (..) ".
Muito
menos foi fautor em política da demagogia de "mais um". "Pela
mania de estar à esquerda de todos não devemos secundar o Partido Comunista nos
seus erros extremistas, além do nosso princípio de não querer impor o
comunismo, e também porque o Partido Comunista faria marcha atrás no terreno
económico e se aproveitaria da nossa colaboração insurreccional expropriadora
para construir e consolidar a sua própria ditadura ".
Sem
condescender com o integralismo e evitando o sectarismo. Será assim o
anarquista italiano que mais procurará favorecer e concretizar uma adequada
política de alianças, reavaliando, a seu tempo, republicanos de esquerda e
liberal-socialistas como Gobbetti e os
antifascistas-federalistas-autonomistas (anti-soviéticos) de Justiça e
Liberdade: Salvemini e os irmãos Rosselli.
A
preferência por uma aliança "estratégica" com os fautores de um
"socialismo federalista liberal" ligada às circunstância e à
política, não representava uma derrogação das opções do socialismo libertário.
Por outras palavras, o objectivo permanecia o mesmo. Assim, se aperfeiçoava,
delineada por Berneri uma táctica para a presença e protagonismo do anarquismo.
Berneri considerava que o anarquismo devia concluir pactos de unidade de acção
unicamente com entidades federalistas e igualitárias, mas por definição contrárias
a todos os totalitarismos.